Polar V

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Quinto estilhaço de estrelas

Quando decidiu mergulhar, o urso polar sentia-se seguro. A pata machucada era apenas uma pata, a barriga vazia apenas uma barriga (e as constelações eram apenas estrelas, e, mesmo a anterior aurora boreal a invadir os olhos do urso cansado seria, brevemente, apenas aurora). Fosse dia, uma réstia de sol raro iluminaria o semblante do urso; mas era noite, sempre é noite, e a ausência de recursos naturais inventáveis nos rende ás palavras. No vislumbre do mergulho, na iminência da queda – o momento inalcançável por qualquer significado, a parte do mundo não vista pelo buraco da fechadura da existência, a verdade que existe no desejo de um beijo e não no beijo em si – o urso foi urso. Balançou o corpo, expulsou o gelo – plenitude sem fulminação, o urso polar era urso polar. Caberia aqui o espaço para o suspiro, mas epifania nomeada é coisa humana.

épsilon

Enquanto sou beijado pelos olhos do visitante inesperado, sob testemunho de Goya, sinto, novamente, cada espaço de minha vida preenchida de azuis. Flutuo. Flutuamos. Começa lentamente, no eriçar dos pelos do meu braço, nos poros abertos de nossos corpos – começa com a língua dele tocando não tocando o céu da minha boca. Me esforço em ignorar que há um céu dentro de mim, e consigo, consigo porque o homem que me tem não tem o peso do homem que carreguei pelos degraus de fora. O beijo, um beijo me enleva – que escadas, que paredes, que corredores, que papeis, que massagens, que cigarros, que porra nenhuma – daquele beijo nós derrubamos tetos de vidro, concretos concisos, satélites de Clarke; e os aviões não nos atropelam, mesmo que o afeto certo de uma transa ilegal nos envolva de neblina e nuvem. Sinto meu corpo afundar no corpo dele quando alcançamos a estratosfera, furamos a camada de ozônio e somos um só na cadência da saliva trocada, no silêncio que cinge o espaço sideral que nos rodeia, onde sempre é noite, onde sempre é madrugada, sempre sempre. Toques, gelos, gentes, sexo; fomes, artes, ursos, nexos; pisos, espelhos, livros, drogas; nortes, neves, ironias, vogas – é tudo tão pequeno diante do beijo que nos faz estrela.

O zunido. Vem baixo, vem sutil, dá paúra, como uma abelha bêbada de mel se aproximando trôpega do meu ouvido, vem e nos explode, estilhaça, separa e derruba. Pés no chão – somos poeira de estrelas. “Eu morro sem que te assimile”, admito, ele retruca qualquer coisa, se veste. Agradece. Diz:

“É isso, então? Quanto fica tudo?”.

“Não fica”, respondo.

“Não, fica”.

E só quando me escuto que percebo não falar dele. Estou falando de meu túmulo, do medo de ser enterrado sozinho, mesmo sabendo ser esta a conclusão única da vida… Vencido, pateticamente nu, admito os delírios da companhia e digo: “vai”. E ele vai. Com o bater da porta da frente, tudo some. Ajoelhado no piso frio, lembro que preciso comprar tapetes e acendo um cigarro para esquecer. Deito-me no chão em consciência do lugar que me pôs a vida – a de capacho de mim mesmo – eu suspiro. Sujo, ululante, sórdido, puto, iridescente, reles, omisso. Sobre mim, uma nuvem de fumaça que traguei.

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2 comentários sobre “Polar V

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