Polar VI

<<

Sexto estilhaço de estrelas

Não começou com o creck! que fez os olhos do urso polar se arregalarem – afinal, onde começam as coisas? “Uma molécula disse sim para outra molécula e nasceu a vida”; mas existia alguma divindade no jeito do chão se quebrar, assim se configurava ao urso, assim. Com o desenho das fissuras que demarcam as placas tectônicas do planeta, o pedaço de chão onde ele se encontrava separou-se do continente e foi passear no mar, atrapalhando o mergulho e o desenrolar do sentir. A vida separou-se do ser. O ser apartou-se da vida. O susto se traduziu em medo quando o urso falhou em firmar os pés no seu pedaço de chão. Deitou-se – afundar era diferente de um mergulho – e foi ser, como nós, eu e você: à deriva.

zeta

Arregalo os olhos como quem desperta de um pesadelo ou se recorda durante a viagem que esqueceu a boca do fogão acesa. Respiro fundo, olho pela janela a noite fria me encarar, a noite torta com suas estrelas mortas; percebo meu fraco reflexo no vidro da janela sem cortinas. Ele fala: “você Tales não sabe o amor”, mas eu só queria sair para comprar tapetes; “você Tales não entende nada sobre o encontro de dois, mais uma vez racionalizando sua própria solidão”, mas eu me desnudei; “mentira: você se vestiu, e enquanto o Tales for mais o outro que a si mesmo, você vai continuar jogado entre paredes e constrangimentos”. Não me entendo, reflito a solidão, vazio e preenchimento, e, ao voltar para o banheiro e encontrar as duas escovas de dentes jogadas na pia, aquela que comprei para esta casa sem tapetes e a outra velha que usava noutras paredes, percebo que me divido e me descubro em outros na tentativa de ser minha companhia mais agradável, mas recebo, apenas, saudades de mim mesmo. Quem eu era antes de sair de casa? Homem à deriva, pinguim sem asa? “Você Tales é a razão, a matemática – um coração preenchido de números. Noves fora e o quociente é mais um coração partido, a enésima tentativa de afeto definida por quebrados pós-vírgula, a raiz do relacionamento perfeito não é exata em seu peito, sua soma de ninfetos não é igual a soma dos babacas que como puto te usam, você era geométrico, era natural, era inteiro, o que aconteceu?”. Porra, aconteceu o relacionamento imaginário e essa merda de busca infinita.

Não sei explicar de onde vem a tentativa, mas quando menos espero estou novamente me vestindo. Pinguim sem asa, invento ser presa natural ao urso. Talvez, só talvez, se eu correr, talvez o encontre no ponto de ônibus, na ponta da calçada, dando sinal ao primeiro destino, e aí eu corro mais, exclamo “urso!” e vou, abraço, fica por favor, talvez eu ainda te ame quando acordarmos amanhã, ainda, talvez eu te ame para sempre, sem medo, me entende?, mas é que agora eu tenho essa vontade assim meio boba de deitar no seu peito e deixar você acariciar meu braço, em quase silêncio, dizendo baixinho dorme bem que cê tá seguro, e eu confio porque te amo agora e mesmo que não seja infinito o amor é como essas estrelas que morrem e irradiam luz através dos tempos e a gente só percebe que morreu depois, sabe? Não me importa viver de ilusão se eu puder dormir com você esta noite.

E então, desembalado, pisando salas, corredores e atravessamentos, eu esqueço o celular, eu corro pelas escadas, eu saio para as ruas, fingindo acreditando amando contradizendo amar.

>>

3 comentários sobre “Polar VI

  1. Pingback: Polar V | pelvini

Deixe um comentário