Polar III

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Terceiro estilhaço de estrelas

O céu perdeu as cores boreais e mergulhou o norte em escuridão. As nuvens, elas não existem, então um sem-número de estrelas piscaram inertes para o urso polar. Constelações inteiras conversavam umas com as outras, formando um painel único, indecifrável ao que é bicho, desafiador a quem é humano – este último, sempre teimoso, até transformou a estrela polar em norte. “Ou será que sempre foi assim?”. O urso polar se guiava pela existência e não pela essência das coisas – não poderia despertar mais a inveja de quem o lê. Estava sentado, olhando adiante. Enquanto o céu se abria em desenhos estelares, alfa em colisão com si mesma estilhaçando-se no brilho mais forte, e todos os signos se adaptavam às sinastrias, Mercúrio regredindo, Saturno regendo os ofícios; enquanto até discos voadores esperavam por sentido humano, o urso polar coçava a barriga. Tinha fome.

gama

Enquanto lavo as mãos, desviando os olhos de quem me encara pelo espelho, porta do banheiro aberta, ouço:

– Você tem gelo nos olhos.

Eu me preenchi dos pensamentos os mais selvagens, was I born wild?, busquei as conclusões de Clarice e Pessoa, quis ser bicho, galinha, qualquer outra coisa viva e selvagem além dessa esponja solitária; é possível se arrepender da vida?. Repeti “have I been sleeping this whole damn time dreaming up a life?”. Se a vida recomeçasse agora, durante vivo, enquanto penso, eu viro bicho, águia atenta entre frias montanhas, pinguim migrante acompanhado, leão marinho portentoso, qualquer um que me tire dessa face inexpressiva vista no espelho, deste retrato mais gelado da pessoa que um dia fui. Penso isso, “retrato gelado do que fui”, tento saborear essas palavras, comê-las, não a essência, nem a poesia, tampouco seu significado, eu tento comer a existência delas, apenas a existência. E – e – você tem gelo nos olhos?! O estranho homem azul, ousado, rouba minha noite, preenche meus vazios sem pedir dicas e ainda tem a indelicadeza de entrar na minha mente; eu me enxergo, derreto meu gelo com um olhar furioso, decidido a expulsá-lo, “cai fora, to esperando alguém” e outras mentiras prontas na língua. Mas volto à sala e quem me espera não é homem, é um urso.

Parece bobagem dizer assim – “é um urso”; mas não há maneira diferente de explicar. Aconteceu sem a lentidão da água virando gelo, sem as eras que levam à formação das estalagmites. Assim como um espaço branco vira cor quando você clica nele, assim como o celular vibrando te faz lembrar não existir inocência, o homem não é mais homem. Agora é urso. Meus olhos se desmontam e eu me aproximo com o cuidado de quem se aproxima das coisas tão perigosas ou tão bonitas – como se o toque pudesse me violentar, ou desmanchá-lo. Percebo o piso frio e, a cada passo, os pés descalços, as pernas nuas, o peito aberto. Olho em volta e minhas paredes são só horizonte, mar frio no céu escuro. Vejo estrelas, uma única constelação, alfa, beta, gama e outras desenhando Ursa Menor – ou sou eu quem a desenha? – e não vejo meu apartamento, nem meu lar, nem meus vazios, nem meus azuis. Somos apenas estrelas, urso polar, neve e eu.

Tremo, e temo, quando o urso polar abre os braços para mim. Não entendo sua expressão, se é fome, se é serenidade, se é desejo, se é raiva; afundo minha face no peito do urso, minhas mãos tentam se alcançar nas costas dele e desistem em seguida, então deixo o urso me ter, e ter inteiro, sangrando meu pescoço e rasgando minha carne; e então percebo que estou além da nudez, que estou sem pele, sem pensamento; o urso ruge e por um milésimo-centésimo-infinitésimo de segundo eu esqueço o que é ser gente. Vejo as estrelas e me pergunto: também sou coisa?

O homem azul goza e eu lembro que não, que sou gente, pessoa com fluidos na mente e pensamentos no pau. Me levanto, em silêncio, procurando roupas e toalha; ouço “você tem gelo nos olhos”. De novo?

Sigo pelo piso frio, pelas paredes tão nuas, abro a geladeira. Eu tinha fome.

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2 comentários sobre “Polar III

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